Aug 31, 2010

metro avenida

Entrei no metro. Bêbeda, um pouco. O jantar tinha sido aberto e bom. Apesar de algo ter mudado a minha amiga ao ponto de não a reconhecer bem, ela parecia contente e pronta a pegar-se com a vida e os seus habitantes.
Metro tardio, metro que não chega. Puxei do caderno, que não deixa nunca ninguém conhecer tédio.
Depois dum pouco, um magrinho no canto do meu olhar. Um curioso. Um que se levanta, vem, e diz : - Posso ver?
- Pode. Não há muito para ver.
Ele olha, o magrinho. Está a suar muito.
Diz: - É um quiosque.
- Pois é. O da Avenida de Roma. ( A minha amiga mora em frente)
Do nada, diz: - A professora me disse: tens de ir para o Porto, para as Belas-Artes.
- E o senhor, foi?
Diz : - Como disse?
- Então? Foi para o Porto, para as Belas-Artes ?
- Não fui. Os meus pais eram pobres. E são.
O olhar dele para o meu caderno tem paixão própria, daquelas proíbidas.
- E agora?  Ainda desenha? Papel, lápis.... não é caro.
- Estou num restaurante. Não posso. Saí da escola com 18 anos. 18 anos. Não dá.
- E sente saudades? Do desenho?
Fica calado, ele. Que pergunta mais filha-da-puta, também. Como se não soubesse o que ele sente. Talvez lhe faça bem contar. E quero ouvir.
- Sinto.
Atira-se outra vez para a história da professora, a professora que o reconheceu, que o viu, que achou que devia ir para  Belas-Artes. O metro chega, ele conta. Entramos, ele conta. Lembra-se de tudo, cada pormenor, o que ela disse, o tamanho do desenho que provocou o reparo, o tema. Mas não foi para Belas-Artes, foi para o restaurante. Com 18 anos. Agora deve ter uns quarenta. Os seus pais eram pobres.
- E nunca mais desenhou?
- O cardápio, diz. - As vezes desenho o cardápio.

Chega a minha estação. Desço. Ele despede-se de mim chamando-me professora.

Verdade, verdade, é que eu também saí da escola aos 18.
Os meus pais não eram pobres.

1 comment:

  1. mas ainda desenhas.
    e bem, e que bem que faz.
    porque a vida só não chega, como dizia o outro.

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