Duas da manhã. Emilia já ouviu o lixo passar em sonhos, quando acorda com gritos de mulher, na rua, uma voz jovem e aranhada:
só você
só você
só você
só você é que dá cabo
só você é que dá cabo de nós
só você
só você
só você é que dá cabo de nós
deve ser a habitante da ruína ao lado, um prédio que já há muito ficou sem água nem luz nem janelas. baixinha, está sempre muito bem vestida. Deve ter acesso algures ao armário duma tia defunta, camisas e casacos (1950, passeio na avenida) chegam-lhe pelos joelhos. Emilia vê-a as vezes pedir cigarros a entrada do metro.
cala a boca!
responde de cada vez, mil vezes, uma voz mascúlina.
Antes de voltar a adormecer Emilia ainda pensa que na idade adulta nunca ninguém a mandou calar assim. É bom não viver numa ruína.
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