Feb 18, 2010

os bons olhos

Naquele tempo, a fotografia ainda no futuro da espécie, um retrato era coisa difícil, e cara. Quem se mandasse retratar juntava no quadro as vitórias e os vencimentos, as posses; mulher na flor da idade, filhos, frota, fortalezas, o que fosse. Queria imagem eterna da sua pessoa pelo que não se podendo levar ao paraiso, lá conduz. Olha, existi! Fui este que vês vestido de veludo, mandei neste castelo e na sua senhora.
Ele não. Ele queria um retrato em amante. Não é que não tivesse as riquezas profanas, as terras férteis e o casamento, tinha-as bem agarradas até, família farta, negócios prolíficos.
Seria por tamanha solidez? Pediu ao pintor a breve nudez, o jeito do amor, melhor seria no instante do prazer.
Quis saber o artista:
-Sua excelência me perdoe, este quadro, retrato de si feito homem só de carne, só daqui de baixo o terrestrial, onde o vai dependurar? Que olhos o vão ver? Quem vai desfrutar desta entrega que me pede para perenizar? Quem?
- Quem? Isto interessa?
- Ninguém trabalha com gozo para ser invisível.
- Não se preocupe, o quadro será visível. Haverá olhos, bons olhos. Pode começar. Me devo despir?

O pintor sorri.
- Ainda não. Me deixe olhar. Se aproxime da janela. A outra, onde o sol bate reflectido... Agora se dispa. Bem, a sua tez se afirma na luz. Se senta ali na poltrona... deste lado, sim.
- Sentado? Um amante sentado? Quero ser um amante deitado.
- Será. Preciso de dois ou três esboços. Feche os olhos. Incline a cabeça para trás.

O homem ri, feliz com o quente sol esparramado nas pálpebras, na pele, no pau. Obedece, pescoço arqueado, oferecido.
- Não faça de mim mulher.
- Seria difícil.
O artista hesita. Mas ela, dos olhos, dos bons olhos, não quer que a retrate também? Da próxima vez? Não ficará mais caro.O homem nu abre os olhos, sem mexer fita o pintor. Fininho no fundo da voz de mando corre agora o fio duma água muito pura:
- Me disseram que o senhor é o melhor pintor da cidade.
- Talvez. Me prezo.
- Já que a mencionou... ela, dos olhos, dos bons olhos, não se deixa pintar. Este retrato... o senhor tem de pintar ela em mim. Ela em mim.

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